Semana da Leitura

Publicações

5 Dias/5 Poemas

2ª feira

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca.

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto;

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

 
De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas inesperadas

Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído

No papel abandonado)
 

Palavras que nos transportam

Aonde a noite é mais forte,

Ao silêncio dos amantes

Abraçados contra a morte.

Alexandre O’Neill


3ª feira

Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer – que não saltei da ponte, nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe.
Ainda bem
que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno.
Ainda bem
que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí – ainda mais perdida do que
antes – a olhar sem ver.
Ainda bem
que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.
Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer – mas é – um poema de amor.

Maria do Rosário Pedreira

4ª feira
O amor é
um nome de mulher
na boca de um homem.
 
O amor é
uma flor perfeita
na lapela de um homem só.
 
O amor é
um continente sem fronteiras
para que tudo aconteça.
 
O amor é
a alegria do corpo
sem vergonha de amar.
 
O amor é
dividir somente
o que se pode partilhar.
 
O amor é
uma cidade azul
no dorso de uma nuvem.
 
O amor é
um rapaz loucamente
apaixonado por uma rapariga.
 
O amor é
tão fácil e tão simples
que até se torna difícil.
 
O amor é
tudo aquilo que um dia
ganhamos coragem para ser.
 
O amor é
gostarmos de nós
e sabermos porquê.

José Jorge Letria

5ª feira

As palavras aproximam:
prendem-soltam
são montanhas de espuma
que se faz-desfaz
na areia da fala

Soltam freios

abrem clareiras no medo
fazem pausa na aflição

Ou então não:

matam
afogam
separam definitivamente

Amando muito muito
ficamos sem palavras

Ana Hatherly


6ª feira

As meninas


Arabela
abria a janela.
 
Carolina
erguia a cortina.

E Maria

olhava e sorria:
“Bom dia!”
 
Arabela
foi sempre a mais bela.

 Carolina,

a mais sábia menina.

 E Maria

apenas sorria:
“Bom dia!”
 
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
 
uma que se chamava Arabela,
uma que se chamou Carolina.
 
Mas a profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:

“Bom dia!”

Cecília Meireles


5 Dias/5 Contos

2ª feira

LETRAS ASSINADAS

No paredão austero da Mundial, onde a prudência administrativa mandou pespegar uma lápida: «É proibido afixar anúncios nesta propriedade», um miúdo de metro e meio de altura escreveu a carvão estas letras infamantes para a higiene do edifício: «Viva o Benfica».
O miúdo não percebia de leis, pelos vistos. O miúdo não sabia que homens muito sábios, muito avisados e muito prudentes têm escrito milhares de palavras de ordem - e que essas palavras de ordem foram articuladas para serem rigorosamente cumpridas. O miúdo só sabia que tinha uma mensagem para dizer, umas palavras que eram a ordem das coisas e a própria expressão do seu mundo: «Viva o Benfica». E o miúdo escreveu-as. Em letras grandes, mal feitas, mas grandes e arrogantes. Limpou as mãos aos calções e ficou a espiar a sua obra. Faltava lá qualquer coisa. Tornou a pegar no carvão e escreveu: «Manel». Responsável pela afirmação, o Manel não quis que ela ficasse anónima. A sua responsabilidade começou a partir daí. Um polícia aproximou-se lentamente. Viu tudo. E, como as leis são feitas para se cumprirem, agarrou num braço do Manel. O Manel a princípio ficou surpreendido e perplexo; depois, como ter medo é próprio dos homens, o medo apareceu-lhe em veios por todo o corpo, para se exprimir finalmente em resistência e lágrimas. 
Começou a juntar-se gente. Manel gritava e o polícia manifestava firmeza na mão e indiferença no olhar. Com razão ou sem ela, a verdade é que as pessoas que formavam roda penderam em simpatias e inclinações para o miúdo-pardal-de-telhado que estava à beira de ser engaiolado. O polícia, certamente, começou a pensar que uma situação absoluta é horrível - concluindo para os seus botões de metal, que «nem tanto ao mar, nem tanto à terra», que é um belo aforismo, muito profundo e muito reverente. Afrouxou a pressão que fazia no braço do Manel. Afrouxou também a tensão que se estabelecera entre as pessoas que miravam a cena. Manel deu por isso com os seus olhos espertos e traquinas. E correu. E escapou-se. Porém, antes de virar à esquina, voltou-se para trás e gritou para o polícia:
  – Se calhar o sô guarda é do Sporting, não?

Baptista-Bastos 

3ª feira

RETRATO DE MÓNICA  

Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, colecionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.

Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstrata. Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.

De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.

A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.

Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distração pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distração. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.

Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é ótima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exatamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.

Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicurascaixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.

O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.

É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.(…)

Sophia de Mello Breyner e Andresen in Contos Exemplares

4ª feira

A AVÓ CÂNDIDA

Era um daqueles dias em que tudo lhe corria mal. Um dia azedo, inútil, irritante, a ter de viver (era tão aborrecido ter de viver por força dias assim, não poder fechá-los, pô-los de parte como se faz aos livros sem interesse!). O tempo estendia-se, de vez em quando parecia hesitar, parar um pouco no relógio de pulso de Clara e ela sacudia-o muito enervada. «Quem me dera hibernar como um bicho», pensou. Pendurar-se pelos pés ou enrolar-se em si mesma (enrolar-se era mais cómodo) e esquecer tudo e acordar uns meses mais velha. Acordar velha seria o ideal. Não um pouco velha com alguns cabelos brancos e rugas a ter que disfarçar com cremes apropriados e fonds de teint muito espessos.

Não. O que ela gostaria era de acordar totalmente velha, velha como a avó Cândida, velha sem remissão. Que boa coisa poder finalmente ser ela, natural mesmo por pouco tempo, sem mentira. Não se fazer mais velha como dantes nem mais nova como lhe acontecia agora, nem mostrar-se mais inteligente nem mais estúpida conforme falava com este ou com aquele, nem fingir que gostava nem que deixava de gostar. Talvez os velhos e as crianças fossem mais autênticos por estarem mais perto do nada... Os que partem e os que chegam... Os que chegam. Bolas! Lá escrevera aquilo no anúncio do leite Vitória que é a vitória do leite em pó. Outra folha rasgada porque o patrão não gostava de rasuras. Tinha sido assim desde manhã. A primeira coisa saíra-lhe torta (rasgara a blusa nova, a de nylon, ao vestir-se) e ali se pusera ela a caminhar para outros desastres, e, o que era pior que tudo, consciente de caminhar para eles. Dobrara a perna com mais força e pronto, as meias estavam estragadas e ela sem dinheiro para comprar outras. Onde o fim do mês ainda vinha! Havia também o salto do sapato, do par de ver a Deus que só calçava quando saía à noite ou quando ia a casa da família, diarite de quem gostava de aparentar uma relativa prosperidade, e que com a pressa, para não chegar tarde ao escritório, tinha enfiado entre as tabuinhas do elétrico, aquelas tabuinhas detestáveis, mesmo feitas para prender saltos de sapatos, e que ficara quase arrancado, a baloiçar um pouco, de cá para lá. Havia isso e por detrás de tudo um homem de quem gostava e que se ia casar. Mas ela não queria pensar nisso. Que ganhava em pensar em tal coisa? O cesto já estava cheio de papéis porque toda a manhã e toda a tarde tinha acumulado erros sobre erros. Apetecia-lhe partir a máquina, partir a mesa, partir os olhos muito escuros, atrevidos, melosos, da Alda que de vez em quando se erguiam para ela a entornarem amor não correspondido e a sentirem muitíssimo. «Então, Clara! Oh, querida, como estás enervada, o que te aconteceu?» E aquele s sempre a vir em lugar do a Lisbos, qual Lisbos! Ainda se fosse Lesbos! Lesbos tinha uma certa graça! Graça para ela naturalmente, que tinha a especialidade de achar engraçadas coisas de que ninguém se ria, graça para ela mas não para o senhor Paiva que não gostava que lhe estragassem papel nem tempo. Porque ele tinha comprado tudo, era tudo dele, o tempo e o papel.

«Mas o que lhe aconteceu hoje, D. Clara? Não se sente bem?» O tom não era propriamente atencioso mas de desgosto e de reprovação, de nítida reprovação. «Creio que estou um pouco cansada, senhor Paiva. Se não lhe faz muito transtorno, vou para casa.» E a Alda tão aflita: «Ó Clara, tem cuidado contigo!» Nem lhe tinha dado resposta.

Agora eram quatro horas e caminhava pela rua fora. Estava frio, mas ela não o sentia. Não sentia coisa nenhuma, a não ser as malhas da meia direita a escorrerem-lhe pela perna abaixo e também o salto que de vez em quando a fazia tropeçar. Estava num dos seus dias negros. Sozinha. «És tu que o queres, não é verdade?», dissera-lhe a mãe um dia. «O remédio está na tua mão. Bem sabes que cá em casa há sempre um lugar para ti. Por que não voltas, Clara?» Mas ela não queria regressar a casa dos pais. Tinha o seu lar, que não era bem um lar porque vivia sozinha dentro dele mas a que se havia habituado, tinha a vida que ela escolhera — tê-la-ia de facto escolhido? — uma vida livre, de mulher só.

Já não saberia viver com os pais, com refeições a horas, visitas a quem teria de aparecer, o tricot à noite para não morrer de tédio. Perguntava às vezes a si própria se já saberia viver com alguém, de habituada que estava a não dar contas dos seus atos, a fazer sempre, sempre, aquilo que lhe apetecia fazer. Sempre? E aquele homem que se ia casar daí a três dias? Estava ainda a ouvi-lo. «Clara, tenho de te dizer uma coisa e não sei como hei-de começar...» Ela perguntara: «Vais-te casar, não é?» e tinha-o feito por uma intuição de momento, sem acreditar nas próprias palavras, mas de repente pusera-se a ter medo daquilo que ia ouvir, pois ele não se rira. Tinha falado, falado, mas Clara não ouvira nada. O quarto deixara de repente de existir e também o homem que falava, e só ela continuava ali. Só ela. Mas sentia-se vazia e incapaz de articular um som. Das outras vezes fora diferente. Das outras vezes tinha sido ela a pôr a palavra fim ao fundo da última página, e mesmo das outras vezes aquilo nunca tinha acontecido por amor. Por estar só quase sempre. Por ter frio. Não fora por isso difícil, nem doloroso nem inesperado, avistar o fundo do copo. Às vezes isso até lhe trazia uma certa calma. A bebida estava- se a acabar, era tudo. Mas a vida continuava. Agora também, naturalmente, mas ia ser outra vida. Uma existência vazia, onde ele não estava e onde ele, Clara sabia-o bem, nunca mais deixaria de estar. Mas não queria pensar nele. Por que se agarrava ele aos seus pensamentos? Por que vinha em todos?

Tomou o autocarro nos Restauradores e teve de subir para o primeiro andar porque havia muita gente. Ela não gostava de ir lá para cima; tinha medo de descer as escadas em andamento, enervava-se, tropeçava quase sempre, havia quase sempre um ou outro cavalheiro amável, já idoso, que a segurava e ela não sabia muito bem se havia de lhe agradecer ou de se zangar ou até de lhe dar uma bofetada, porque não achava necessário que a agarrassem no peito nem na saia. Mas nessa tarde não havia ao fundo da escada, para descer, nenhum senhor de idade, e ela teve pena de que não fosse assim porque quem lá estava era o primeiro de todos, aquele que a levara a fugir da casa dos pais, aquele em quem tinha acreditado a ponto de casar com ele. Acreditado nele e em si, mas tudo por culpa dele porque lhe dissera tantas coisas que ela julgara que de facto o amava e que lhe podia encostar todos os seus medos e todas as suas incertezas e que na sua companhia nunca mais se sentiria só. E já lá iam tantos anos e ele agora estava ali e nem mesmo a viu porque saltou com o carro em andamento como era seu costume. Clara ainda abriu a boca, ainda quis chamá-lo, mas ele já ia longe, não poderia ouvi-la. E depois, chamá-lo para quê? Era sempre tão triste voltar atrás, tão desconsolador... Outra malha. Decididamente tinha de aproveitar a visita à avó Cândida para lhe pedir dinheiro emprestado. A avó servia-se sempre desses pedidos para lhe pregar um pouco de moral, antes de lhe passar o dinheiro para a mão, naturalmente. «Disseram-me que levas uma vida contra a lei de Deus!»

«Que é uma vida contra a lei de Deus, avó?», «Viram-te a fuma-a-ar à mesa duma pastelaria, da Bénard. Estavas com um homem. Depois, daí a pouco tempo encontraram-te na rua com outro. Que dizes a isto?» A avó fulminava-a com o seu grande olhar muito apoiado, transparente apesar dos oitenta anos.

«Clara, que dizes a isto?» Que havia ela de responder? Que a seguir a uma desilusão tinha vindo outra?

Não, nem mesmo o romantismo e as bonitas palavras podiam convencer a avó Cândida, tão antiga e tão puritana. Mentia-lhe, era a única maneira. «Que ideia a sua, avó. Lá por eu ter feito aquele disparate! Era muito nova, sabe? Oh avó, até me ofende! Eram com certeza colegas meus lá do escritório. Confesso que já nem me lembro quem eles eram, mas tenho ideia de que estive de facto na Bénard... Ah, já sei! com o Chico, era o Chico, um rapaz inofensivo, coitado. Até dizem que é homossexual.» A avó quase se levantara da cadeira, a sua voz varrera a sala: «Menina!» «Desculpe, avó». Quando tocou à campainha sentiu logo os passos de Gertrudes pelo corredor fora. «Como está a senhora?» A rapariga disse baixo: «Assim, assim, menina. Não está grande coisa. Veio cá ontem o médico. Sempre o mesmo, diz ele, o coração que não regula. Deu-lhe um remédio e passou a noite sossegada. Mas acordou a dizer que morria depressa e meteu-se no escritório a rasgar papéis. Está lá dentro há que vidas.»

Clara entreabriu a porta do escritório e disse: «Posso entrar?» Mas viu logo que a avó Cândida tinha adormecido. A sua grande cabeça branca, de caracóis sedosos, leves, esvoaçantes, estava deitada sobre a secretária, em cima do braço esquerdo, tão gordo que mal se podia dobrar. Uma gaveta tinha ficado aberta e ao lado estava o cesto com alguns papéis amarrotados e rasgados. Clara avançou em bicos de pés e foi sentar-se no velho «fauteuil» de franjas. Lembrava-se de que a avó, quando ela era pequena e ia lá a casa passar a tarde, a atava com uma linha ao pé daquele «fauteuil» para a não deixar fazer maldades. E ela ficava muito quieta. Pensou de súbito que gostaria de saber se não se mexia por ser uma criança obediente, por ter medo da avó ou por julgar que não seria capaz de rebentar a linha. Havia de lhe perguntar quando ela acordasse. Olhou para o relógio. Quase cinco e meia, a avó ferrada no sono e ela sem poder ir-se embora porque precisava do dinheiro para as meias e para o conserto do sapato. Tinha de esperar, claro. Acordá-la, nem pensar nisso. A avó sempre tivera o acordar rabugento.

Não se ensaiava nada para lhe dizer terminantemente que não, antes mesmo de ouvir todas as suas explicações. «Nem penses nisso. Tenho tido muitas despesas nestes últimos tempos. Contribuições, obras, sei lá! Escusas de contar comigo.» Já não era a primeira vez que isso acontecia. Levantou-se e foi espreitar a pequena aguarela que lhe tinha trazido de Paris como recordação e que ela pendurara na parede porque a achara linda. «Mas como diabo arranjas tu dinheiro para ir a Paris?», tinha-lhe perguntado no dia em que viera despedir-se. «Andas sempre sem um chavo e agora vais a Paris... Saiu-te a sorte grande, Clara?» Ela metera os pés pelas mãos, falara numa excursão muito barata, «incrivelmente barata, avó», numa amiga que lá vivia e se oferecera para a hospedar em sua casa. «Tu lá sabes, lá sabes... mas não contes comigo, ouviste? Ainda para te tirar de apuros a coisa vai-se arranjando, agora para ires a Paris, a essa terra de perdição...» Era uma aguarela chata e sem o menor interesse, mas cheia de recordações. Agora que tudo tinha acabado, desejaria tê-la consigo, pendurá-la no quarto, olhar para ela todos os dias. Havia de pedi-la à avó. Lá estava o pequeno café da Place de la Contrescarpe, onde estivera sentada com ele a beber uma mistela acinzentada e sensabor que só acabara de cair do filtro quando estava completamente fria. Ele tinha dito: «Se tu pudesses saber como me sinto feliz! Creio que nunca me senti tão feliz.» E ela compreendera que as recordações do tempo em que ali estudara tinham um grande peso nessa felicidade que ele estava a sentir. Mas pusera sem ressentimento a mão na dele e sentira-se feliz também. «Com quem estiveste aqui? Conta lá.» Ele encolhera os ombros e tivera um sorriso largo, contente, muito fátuo. «Com uma inglesa morena, terrivelmente poética, que estudava já não sei o quê na Sorbonne. Não me saía do hotel, para ser mais preciso, não me saía do quarto, o que era um pouco comprometedor. Chamava-se Daisy. Ainda me escreveu postais de Birmingham com alusões ao tempo e às possibilidades de voltar mas não lhe respondi.» Ela sorrira, lembrava-se perfeitamente de que sorrira. Lembrava-se também da mesa a que tinham estado sentados, logo à entrada, do lado direito. Quando a avó acordasse pedia-lhe o quadro.

Não lhe falava no dinheiro. Paciência. Havia de se arranjar de qualquer maneira. E tinha os olhos cheios de lágrimas e a cara cheia de lágrimas e o casaco salpicado de grandes pingos escuros.

A Boga saiu então de trás de uma cadeira. Era cinzenta, peluda e muito séria. Uma gata de sua casa, para agradar à avó Cândida. Sentou-se a olhar para Clara com o seu olhar amarelo e quieto.

Depois desinteressou-se e deu um piparote no cesto. Algumas bolas de papel espalharam-se pelo chão.

A Boga bateu numa delas com ar displicente e a bola foi tocar nos pés de Clara. Ela baixou-se maquinalmente e pôs-se a alisar o papel no joelho. «Minha Cândida adorada». Era uma carta de amor com todos os palavrões da época. Adorada, idolatrada, coração ardente, alma gémea, e outras coisas no género. Com certeza do avô Albino. Como seria o avô Albino? Já não o conhecera — como havia de o ter conhecido, se o pai era pequeno quando ele morrera? — mas o que a avó dizia dele permitia-lhe fazer uma ideia. «O teu avô era um excelente homem, não podia haver melhor. Mas coitado, só via o que lhe punham diante dos olhos. Para além disso, nada.» Era assim que a avó falava do avô Albino que um dia, coitado, se suicidara por coisas de dinheiro, do avô Albino, autor daquela carta tão ardente e cheia de pormenores que... de pormenores que... Mas por que diabo escreveria o avô Albino aquela carta à sua mulher legítima? Só se... Voltou a folha. Pois claro. A carta não era do avô Albino, mas dum tal Augusto. «Muitos beijos do teu Augusto que te adora.»

Agora Clara estava muito excitada. Apanhou todas as bolas, juntou pedaços rasgados, e pôs-se a ler tudo aquilo, à pressa, olhando sempre para a avó Cândida que podia acordar dum momento para o outro. E depois do «teu Augusto que te adora», havia «o teu Mário que se lembra muito de ti» e a seguir «o teu Jorge que não te esquece um só momento» e ainda outro, que, prudente, assinava com uma inicial muito bem desenhada, um F. Mas no meio de toda aquela baralhada houve uma carta que fez Clara dar um pequeno grito e depois ficar à espera, aterrorizada, com medo de que a avó acordasse. E como ela não acordou, porque já não podia acordar, voltou a lê-la para a compreender melhor. Era uma carta de adeus, do avô Albino em que ele se despedia da avó Cândida e lhe explicava a razão por que ia dar um tiro nos miolos. Essa razão era ter sabido que ela o atraiçoava, que ela o atraiçoara sempre. «Mas perdoo-te, Cândida, e espero que sejas feliz.»

Clara gritou: «Avó!» E não sabia por que gritara. Depois repetiu mais alto ainda, espantada da sua imobilidade: «Avó!» Levantou-se a correr, deu a volta à secretária. «Avó! Avó! Avó!»

Mas a avó Cândida tinha partido havia muito.


Maria Judite de Carvalho in Tanta gente, Mariana

5ª feira

CARTA

Eis que te procuro agora como nunca, te espero agora como nunca. Se tu visses... A casa fica no meio das oliveiras e de um quintal de verdura. O tempo não passa por ela distraído, e demora-se sempre um pouco. Quando é pela primavera, há flores nas macieiras e pintainhos novos pelo pátio. E quando é o Verão, há as manhãs solenes, e quando é o Outono, o ouro das colheitas. Lembro essas manhãs e o brilho fresco da água pelas noites sufocantes de Julho, e o frémito da terra na hora do recomeço. Meu pai, quando parti, disse-me:
— Volta.
Minha mãe olhava-me em silêncio, dorida, e todavia serena como se detivesse o fio do meu destino, ou soubesse, da sua carne, que tudo estava certo com a vida: o nascer, o partir, o morrer.
— Volta — repetiu ainda meu pai.
Eis que volto, enfim, nesta tarde de Inverno, e o ciclo se fechou. Abro as portas da casa deserta, abro as janelas e a varanda. No quintal as ervas crescem com as sombras, as oliveiras têm a cor escura do céu. Em baixo, no chão húmido ao pé da loja, há restos de ferragem enferrujada: um sacho sem cabo, um aro de pipa, um regador. Meu pai amava a terra. Lembro-me de o ajudar a podar o pequeno corrimão de videiras, de lhe ir encher o regador para o cebolo novo. Minha mãe olhava-nos da varanda e os três sabíamos uns dos outros no silêncio dos corações. Pensei, sofri, lutei. Mas de tudo o que aconteceu é como se nada me tivesse acontecido. Alguém me incumbiu do que fiz, muito antes de eu nascer, quando outros homens, outra gente, acabavam a tarefa que eu havia de começar. Essa tarefa deixo-a aos que vierem depois. De tudo, ficou-me apenas esta voz humilde que ouço, que ouço.
— Se voltares — tu o dizias.
Aqui estou. Acendo lenha no fogão e as chamas crescem como uma memória antiga. Silêncio bom. Como outrora. Como quando nada tínhamos já a dizer, e estávamos cheios, todavia, da presença um do outro. Estendo as minhas mãos ao calor, e olho, e escuto. O lume enche-as de sangue, acende-as por dentro como brasas. Tu dizias:
— Ninguém conhece as suas mãos. Só talvez as dos outros. É bom ter as tuas aqui, com os dedos todos submissos.
Estranhas noites estas de Inverno, sem um rumor. Só os cães ladram das quintas. Discutem pela noite fora até adormecerem. Ouço um já rouco, lá nos confins da noite, agora a falar sozinho, decerto para ter a última palavra. Houve um cão outrora cá em casa. Numa manhã de chuva, achámo-lo à porta da cozinha, todo ensopado, a tiritar. Minha mãe não gostava de cães.
— Sujam tudo, roem tudo.
Enxuguei-o, dei-lhe pão, pus-lhe um nome. Minha mãe resignou-se. Os caçadores levavam-no à caça porque tinha bom faro. Um dia, não sei como, mataram-no com um tiro. Era um cão perdigueiro. Tinha um olhar humano.
A chama apaga-se, a pirâmide de carvões desmorona-se. Os cães adormecem enfim, sob o grande céu de estrelas. Não há lua. Nem vento. Só as estrelas vibram no céu negro de veludo. Se tu viesses. Eu te imagino, desde o fundo do meu cansaço, silenciosa e grave como esta hora final, como um apelo obscuro vindo do abismo do tempo. Um halo de sombra coroa o teu olhar, a tua presença é quente como o fluido da ternura. Tudo em vão, tudo em vão. Ou não bem isso, não bem isso. Alguma coisa me ficara esperando talvez, desde antes e antes, qualquer coisa que eu trazia do lado de lá da vida. Eis que a encontro e me fala e floresce no sangue e procuro reconhecê-la na tua face. Aqui ao pé do fogão há uma cadeira de braços. Minha mãe sentava-se nela, meu pai nesta em que escrevo. Pelas noites de vento, olhavam o lume, deixavam-se adormecer... Tu dizias:
— É bom terem já dito tudo e reconhecerem-se ainda.
Abro de novo a varanda para a noite, o ar gela-me a face como um espelho. Ao fundo do quintal havia uma figueira grande. Minha mãe franjeava xailes e cintas para fora. E eu atava as cintas e balouçava-me na figueira.
— Ah, tu acabas por deitar a figueira abaixo. E já rompeste duas cintas.
Numa noite brava de Inverno, a figueira caiu. E minha mãe dizia sempre, daí em diante, que fora de eu me balouçar...
Tanta coisa aconteceu e eu recordo e eu recupero não talvez na lembrança, não talvez, mas num apelo indistinto e longínquo e angustiante como o silêncio desta noite. Olho ainda o frémito das estrelas sobre a aridez fria da terra. E penso: «Qualquer coisa vai acontecer de misterioso e grande, qualquer coisa miraculosa se anuncia como a vinda de um Deus.»
— Sim, a esperança é talvez a melhor parte da vida.
Tu o dizias. Eis que porém a minha esperança tem agora a cor do cansaço e da resignação. E de tudo o que pensei e quis que brotasse da terra, de tudo o que foi novo e me comoveu, da agitação do meu sangue, do clamor com que fiquei rouco, da fúria, do choro, da alegria, de tudo o que me deu a conhecer os meus dentes, os meus ossos, as minhas pobres vísceras — a forma que se desenha e que me envolve agora tem o volume quente do seio da piedade. Se amanhã quando me erguesse e pensasse que havia ainda um dia árido a vencer, e outra noite, e outro dia, e quantos dias e quantas noites o tempo guarda para mim, eu de manhã te encontrasse preparando o fogão e o aroma da casa, e te sentasses nesta cadeira ao lado, e os dois nos esquecêssemos de falar, até um dia, até um dia, e nos deixássemos enfim adormecer... 

Vergílio Ferreira in Contos 


6ª feira

O VAGABUNDO NA ESPLANADA

 O vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.
Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada.
Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.
Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelos simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem, aliviava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto alguém disse:
– Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.
E assim resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas.
Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o sol da tarde quente de Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação.
Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro. Céptico, mas curioso, pôs-se a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem: "Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!" Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
– Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com benevolência.
– Disse?
– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. – Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distração, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
– Que direito vem a ser esse?
– Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.
– E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.

Manuel da Fonseca in Contos

Com o devido agradecimento aos autores, O vagabundo na esplanada 

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