Semana da Leitura
Publicações
2ª feira
HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Alexandre O’Neill
3ª feira
Ainda bem
que não morri de todas as vezes que
quis morrer – que não saltei da ponte, nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe.
Ainda bem
que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno.
Ainda bem
que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí – ainda mais perdida do que
antes – a olhar sem ver.
Ainda bem
que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.
Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer – mas é – um poema de amor.
4ª feira
um nome de mulher
na boca de um homem.
O amor é
uma flor perfeita
na lapela de um homem só.
um continente sem fronteiras
para que tudo aconteça.
O amor é
a alegria do corpo
sem vergonha de amar.
O amor é
dividir somente
o que se pode partilhar.
O amor é
uma cidade azul
no dorso de uma nuvem.
O amor é
um rapaz loucamente
apaixonado por uma rapariga.
O amor é
tão fácil e tão simples
que até se torna difícil.
O amor é
tudo aquilo que um dia
ganhamos coragem para ser.
gostarmos de nós
e sabermos porquê.
José Jorge Letria
5ª feira
prendem-soltam
são montanhas de espuma
que se faz-desfaz
na areia da fala
Soltam freios
fazem pausa na aflição
Ou então não:
afogam
separam definitivamente
6ª feira
As meninas
Carolina
erguia a cortina.
E Maria
“Bom dia!”
Arabela
foi sempre a mais bela.
Carolina,
E Maria
“Bom dia!”
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
Mas a profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
“Bom dia!”
Cecília Meireles
5 Dias/5 Contos
2ª feira
LETRAS ASSINADAS
No
paredão austero da Mundial, onde a prudência administrativa mandou pespegar uma
lápida: «É proibido afixar anúncios nesta propriedade», um miúdo de metro e
meio de altura escreveu a carvão estas letras infamantes para a higiene do edifício:
«Viva o Benfica».
O miúdo não percebia
de leis, pelos vistos. O miúdo não sabia que homens muito sábios, muito
avisados e muito prudentes têm escrito milhares de palavras de ordem - e que
essas palavras de ordem foram articuladas para serem rigorosamente cumpridas. O
miúdo só sabia que tinha uma mensagem para dizer, umas palavras que eram a
ordem das coisas e a própria expressão do seu mundo: «Viva o Benfica». E o
miúdo escreveu-as. Em letras grandes, mal feitas, mas grandes e arrogantes.
Limpou as mãos aos calções e ficou a espiar a sua obra. Faltava lá qualquer
coisa. Tornou a pegar no carvão e escreveu: «Manel». Responsável pela
afirmação, o Manel não quis que ela ficasse anónima. A sua responsabilidade
começou a partir daí. Um polícia aproximou-se lentamente. Viu tudo. E, como as
leis são feitas para se cumprirem, agarrou num braço do Manel. O Manel a
princípio ficou surpreendido e perplexo; depois, como ter medo é próprio dos
homens, o medo apareceu-lhe em veios por todo o corpo, para se exprimir
finalmente em resistência e lágrimas.
Começou a juntar-se
gente. Manel gritava e o polícia manifestava firmeza na mão e indiferença no
olhar. Com razão ou sem ela, a verdade é que as pessoas que formavam roda
penderam em simpatias e inclinações para o miúdo-pardal-de-telhado que estava à
beira de ser engaiolado. O polícia, certamente, começou a pensar que uma
situação absoluta é horrível - concluindo para os seus botões de metal, que
«nem tanto ao mar, nem tanto à terra», que é um belo aforismo, muito profundo e
muito reverente. Afrouxou a pressão que fazia no braço do Manel. Afrouxou
também a tensão que se estabelecera entre as pessoas que miravam a cena. Manel
deu por isso com os seus olhos espertos e traquinas. E correu. E escapou-se.
Porém, antes de virar à esquina, voltou-se para trás e gritou para o polícia:
– Se calhar o
sô guarda é do Sporting, não?
Baptista-Bastos
RETRATO DE MÓNICA
Mónica é uma pessoa tão
extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga
Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer
ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos
jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a
gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela,
colecionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se
cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser sócia de todas
as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de
virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas
pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou
da pintura abstrata. Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e
constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o
sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao
amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa
só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega
algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada
pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são
obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma
disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distração pode causar a morte do artista».
Mónica nunca tem uma distração. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e
todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o
grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo
bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por
isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm
sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é ótima e na
conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida
pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez.
Ou, mais exatamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é
a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é
sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também
íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela
chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais
elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a
parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo
que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica
tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o.
Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é
nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois
sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as
situações mundanas. O mundo
dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.(…)
Sophia de Mello Breyner e Andresen in Contos Exemplares
4ª feira
A AVÓ CÂNDIDA
Não. O que ela gostaria era de acordar
totalmente velha, velha como a avó Cândida, velha sem remissão. Que boa coisa
poder finalmente ser ela, natural mesmo por pouco tempo, sem mentira. Não se
fazer mais velha como dantes nem mais nova como lhe acontecia agora, nem
mostrar-se mais inteligente nem mais estúpida conforme falava com este ou com
aquele, nem fingir que gostava nem que deixava de gostar. Talvez os velhos e as
crianças fossem mais autênticos por estarem mais perto do nada... Os que partem
e os que chegam... Os que chegam. Bolas! Lá escrevera aquilo no anúncio do
leite Vitória que é a vitória do leite em pó. Outra folha rasgada porque o
patrão não gostava de rasuras. Tinha sido assim desde manhã. A primeira coisa
saíra-lhe torta (rasgara a blusa nova, a de nylon, ao vestir-se) e ali se
pusera ela a caminhar para outros desastres, e, o que era pior que tudo,
consciente de caminhar para eles. Dobrara a perna com mais força e pronto, as
meias estavam estragadas e ela sem dinheiro para comprar outras. Onde o fim do
mês ainda vinha! Havia também o salto do sapato, do par de ver a Deus que só
calçava quando saía à noite ou quando ia a casa da família, diarite de quem
gostava de aparentar uma relativa prosperidade, e que com a pressa, para não
chegar tarde ao escritório, tinha enfiado entre as tabuinhas do elétrico,
aquelas tabuinhas detestáveis, mesmo feitas para prender saltos de sapatos, e
que ficara quase arrancado, a baloiçar um pouco, de cá para lá. Havia isso e
por detrás de tudo um homem de quem gostava e que se ia casar. Mas ela não
queria pensar nisso. Que ganhava em pensar em tal coisa? O cesto já estava
cheio de papéis porque toda a manhã e toda a tarde tinha acumulado erros sobre
erros. Apetecia-lhe partir a máquina, partir a mesa, partir os olhos muito escuros,
atrevidos, melosos, da Alda que de vez em quando se erguiam para ela a
entornarem amor não correspondido e a sentirem muitíssimo. «Então, Clara! Oh,
querida, como estás enervada, o que te aconteceu?» E aquele s sempre a vir em
lugar do a Lisbos, qual Lisbos! Ainda se fosse Lesbos! Lesbos tinha uma certa
graça! Graça para ela naturalmente, que tinha a especialidade de achar
engraçadas coisas de que ninguém se ria, graça para ela mas não para o senhor
Paiva que não gostava que lhe estragassem papel nem tempo. Porque ele tinha
comprado tudo, era tudo dele, o tempo e o papel.
«Mas o que lhe aconteceu hoje, D. Clara?
Não se sente bem?» O tom não era propriamente atencioso mas de desgosto e de
reprovação, de nítida reprovação. «Creio que estou um pouco cansada, senhor Paiva.
Se não lhe faz muito transtorno, vou para casa.» E a Alda tão aflita: «Ó Clara,
tem cuidado contigo!» Nem lhe tinha dado resposta.
Agora eram quatro horas e caminhava pela
rua fora. Estava frio, mas ela não o sentia. Não sentia coisa nenhuma, a não
ser as malhas da meia direita a escorrerem-lhe pela perna abaixo e também o salto
que de vez em quando a fazia tropeçar. Estava num dos seus dias negros.
Sozinha. «És tu que o queres, não é verdade?», dissera-lhe a mãe um dia. «O
remédio está na tua mão. Bem sabes que cá em casa há sempre um lugar para ti.
Por que não voltas, Clara?» Mas ela não queria regressar a casa dos pais. Tinha
o seu lar, que não era bem um lar porque vivia sozinha dentro dele mas a que se
havia habituado, tinha a vida que ela escolhera — tê-la-ia de facto escolhido?
— uma vida livre, de mulher só.
Já não saberia viver com os pais, com
refeições a horas, visitas a quem teria de aparecer, o tricot à noite para não
morrer de tédio. Perguntava às vezes a si própria se já saberia viver com
alguém, de habituada que estava a não dar contas dos seus atos, a fazer sempre,
sempre, aquilo que lhe apetecia fazer. Sempre? E aquele homem que se ia casar
daí a três dias? Estava ainda a ouvi-lo. «Clara, tenho de te dizer uma coisa e
não sei como hei-de começar...» Ela perguntara: «Vais-te casar, não é?» e
tinha-o feito por uma intuição de momento, sem acreditar nas próprias palavras,
mas de repente pusera-se a ter medo daquilo que ia ouvir, pois ele não se
rira. Tinha falado, falado, mas Clara não ouvira nada. O quarto deixara de
repente de existir e também o homem que falava, e só ela continuava ali. Só
ela. Mas sentia-se vazia e incapaz de articular um som. Das outras vezes fora
diferente. Das outras vezes tinha sido ela a pôr a palavra fim ao fundo da
última página, e mesmo das outras vezes aquilo nunca tinha acontecido por amor.
Por estar só quase sempre. Por ter frio. Não fora por isso difícil, nem
doloroso nem inesperado, avistar o fundo do copo. Às vezes isso até lhe trazia
uma certa calma. A bebida estava- se a acabar, era tudo. Mas a vida continuava.
Agora também, naturalmente, mas ia ser outra vida. Uma existência vazia, onde
ele não estava e onde ele, Clara sabia-o bem, nunca mais deixaria de estar. Mas
não queria pensar nele. Por que se agarrava ele aos seus pensamentos? Por que
vinha em todos?
Tomou o autocarro nos Restauradores e
teve de subir para o primeiro andar porque havia muita gente. Ela não gostava
de ir lá para cima; tinha medo de descer as escadas em andamento, enervava-se, tropeçava
quase sempre, havia quase sempre um ou outro cavalheiro amável, já idoso, que a
segurava e ela não sabia muito bem se havia de lhe agradecer ou de se zangar ou
até de lhe dar uma bofetada, porque não achava necessário que a agarrassem no
peito nem na saia. Mas nessa tarde não havia ao fundo da escada, para descer,
nenhum senhor de idade, e ela teve pena de que não fosse assim porque quem lá
estava era o primeiro de todos, aquele que a levara a fugir da casa dos pais,
aquele em quem tinha acreditado a ponto de casar com ele. Acreditado nele e em
si, mas tudo por culpa dele porque lhe dissera tantas coisas que ela julgara
que de facto o amava e que lhe podia encostar todos os seus medos e todas as
suas incertezas e que na sua companhia nunca mais se sentiria só. E já lá iam
tantos anos e ele agora estava ali e nem mesmo a viu porque saltou com o carro
em andamento como era seu costume. Clara ainda abriu a boca, ainda quis
chamá-lo, mas ele já ia longe, não poderia ouvi-la. E depois, chamá-lo para
quê? Era sempre tão triste voltar atrás, tão desconsolador... Outra malha.
Decididamente tinha de aproveitar a visita à avó Cândida para lhe pedir
dinheiro emprestado. A avó servia-se sempre desses pedidos para lhe pregar um
pouco de moral, antes de lhe passar o dinheiro para a mão, naturalmente.
«Disseram-me que levas uma vida contra a lei de Deus!»
«Que é uma vida contra a lei de Deus,
avó?», «Viram-te a fuma-a-ar à mesa duma pastelaria, da Bénard. Estavas com um
homem. Depois, daí a pouco tempo encontraram-te na rua com outro. Que dizes a isto?»
A avó fulminava-a com o seu grande olhar muito apoiado, transparente apesar dos
oitenta anos.
«Clara, que dizes a isto?» Que havia ela
de responder? Que a seguir a uma desilusão tinha vindo outra?
Não, nem mesmo o romantismo e as bonitas
palavras podiam convencer a avó Cândida, tão antiga e tão puritana. Mentia-lhe,
era a única maneira. «Que ideia a sua, avó. Lá por eu ter feito aquele
disparate! Era muito nova, sabe? Oh avó, até me ofende! Eram com certeza
colegas meus lá do escritório. Confesso que já nem me lembro quem eles eram,
mas tenho ideia de que estive de facto na Bénard... Ah, já sei! com o Chico,
era o Chico, um rapaz inofensivo, coitado. Até dizem que é homossexual.» A avó
quase se levantara da cadeira, a sua voz varrera a sala: «Menina!» «Desculpe,
avó». Quando tocou à campainha sentiu logo os passos de Gertrudes pelo corredor
fora. «Como está a senhora?» A rapariga disse baixo: «Assim, assim, menina. Não
está grande coisa. Veio cá ontem o médico. Sempre o mesmo, diz ele, o coração
que não regula. Deu-lhe um remédio e passou a noite sossegada. Mas acordou a
dizer que morria depressa e meteu-se no escritório a rasgar papéis. Está lá dentro
há que vidas.»
Clara entreabriu a porta do escritório e
disse: «Posso entrar?» Mas viu logo que a avó Cândida tinha adormecido. A sua
grande cabeça branca, de caracóis sedosos, leves, esvoaçantes, estava deitada sobre
a secretária, em cima do braço esquerdo, tão gordo que mal se podia dobrar. Uma
gaveta tinha ficado aberta e ao lado estava o cesto com alguns papéis
amarrotados e rasgados. Clara avançou em bicos de pés e foi sentar-se no velho
«fauteuil» de franjas. Lembrava-se de que a avó, quando ela era pequena e ia lá
a casa passar a tarde, a atava com uma linha ao pé daquele «fauteuil» para a
não deixar fazer maldades. E ela ficava muito quieta. Pensou de súbito que
gostaria de saber se não se mexia por ser uma criança obediente, por ter medo
da avó ou por julgar que não seria capaz de rebentar a linha. Havia de lhe
perguntar quando ela acordasse. Olhou para o relógio. Quase cinco e meia, a avó
ferrada no sono e ela sem poder ir-se embora porque precisava do dinheiro para
as meias e para o conserto do sapato. Tinha de esperar, claro. Acordá-la, nem
pensar nisso. A avó sempre tivera o acordar rabugento.
Não se ensaiava nada para lhe dizer
terminantemente que não, antes mesmo de ouvir todas as suas explicações. «Nem
penses nisso. Tenho tido muitas despesas nestes últimos tempos. Contribuições, obras,
sei lá! Escusas de contar comigo.» Já não era a primeira vez que isso
acontecia. Levantou-se e foi espreitar a pequena aguarela que lhe tinha trazido
de Paris como recordação e que ela pendurara na parede porque a achara linda.
«Mas como diabo arranjas tu dinheiro para ir a Paris?», tinha-lhe perguntado no
dia em que viera despedir-se. «Andas sempre sem um chavo e agora vais a
Paris... Saiu-te a sorte grande, Clara?» Ela metera os pés pelas mãos, falara
numa excursão muito barata, «incrivelmente barata, avó», numa amiga que lá
vivia e se oferecera para a hospedar em sua casa. «Tu lá sabes, lá sabes... mas
não contes comigo, ouviste? Ainda para te tirar de apuros a coisa vai-se
arranjando, agora para ires a Paris, a essa terra de perdição...» Era uma
aguarela chata e sem o menor interesse, mas cheia de recordações. Agora que
tudo tinha acabado, desejaria tê-la consigo, pendurá-la no quarto, olhar para
ela todos os dias. Havia de pedi-la à avó. Lá estava o pequeno café da Place de
la Contrescarpe, onde estivera sentada com ele a beber uma mistela acinzentada
e sensabor que só acabara de cair do filtro quando estava completamente fria.
Ele tinha dito: «Se tu pudesses saber como me sinto feliz! Creio que nunca me
senti tão feliz.» E ela compreendera que as recordações do tempo em que ali
estudara tinham um grande peso nessa felicidade que ele estava a sentir. Mas
pusera sem ressentimento a mão na dele e sentira-se feliz também. «Com quem
estiveste aqui? Conta lá.» Ele encolhera os ombros e tivera um sorriso largo,
contente, muito fátuo. «Com uma inglesa morena, terrivelmente poética, que
estudava já não sei o quê na Sorbonne. Não me saía do hotel, para ser mais preciso,
não me saía do quarto, o que era um pouco comprometedor. Chamava-se Daisy.
Ainda me escreveu postais de Birmingham com alusões ao tempo e às
possibilidades de voltar mas não lhe respondi.» Ela sorrira, lembrava-se
perfeitamente de que sorrira. Lembrava-se também da mesa a que tinham estado
sentados, logo à entrada, do lado direito. Quando a avó acordasse pedia-lhe o
quadro.
Não lhe falava no dinheiro. Paciência.
Havia de se arranjar de qualquer maneira. E tinha os olhos cheios de lágrimas e
a cara cheia de lágrimas e o casaco salpicado de grandes pingos escuros.
A Boga saiu então de trás de uma cadeira.
Era cinzenta, peluda e muito séria. Uma gata de sua casa, para agradar à avó
Cândida. Sentou-se a olhar para Clara com o seu olhar amarelo e quieto.
Depois desinteressou-se e deu um piparote
no cesto. Algumas bolas de papel espalharam-se pelo chão.
A Boga bateu numa delas com ar
displicente e a bola foi tocar nos pés de Clara. Ela baixou-se maquinalmente e
pôs-se a alisar o papel no joelho. «Minha Cândida adorada». Era uma carta de
amor com todos os palavrões da época. Adorada, idolatrada, coração ardente,
alma gémea, e outras coisas no género. Com certeza do avô Albino. Como seria o
avô Albino? Já não o conhecera — como havia de o ter conhecido, se o pai era
pequeno quando ele morrera? — mas o que a avó dizia dele permitia-lhe fazer uma
ideia. «O teu avô era um excelente homem, não podia haver melhor. Mas coitado,
só via o que lhe punham diante dos olhos. Para além disso, nada.» Era assim que
a avó falava do avô Albino que um dia, coitado, se suicidara por coisas de
dinheiro, do avô Albino, autor daquela carta tão ardente e cheia de pormenores
que... de pormenores que... Mas por que diabo escreveria o avô Albino aquela
carta à sua mulher legítima? Só se... Voltou a folha. Pois claro. A carta não
era do avô Albino, mas dum tal Augusto. «Muitos beijos do teu Augusto que te
adora.»
Agora Clara estava muito excitada.
Apanhou todas as bolas, juntou pedaços rasgados, e pôs-se a ler tudo aquilo, à
pressa, olhando sempre para a avó Cândida que podia acordar dum momento para o outro.
E depois do «teu Augusto que te adora», havia «o teu Mário que se lembra muito
de ti» e a seguir «o teu Jorge que não te esquece um só momento» e ainda outro,
que, prudente, assinava com uma inicial muito bem desenhada, um F. Mas no meio
de toda aquela baralhada houve uma carta que fez Clara dar um pequeno grito e
depois ficar à espera, aterrorizada, com medo de que a avó acordasse. E como
ela não acordou, porque já não podia acordar, voltou a lê-la para a compreender
melhor. Era uma carta de adeus, do avô Albino em que ele se despedia da avó
Cândida e lhe explicava a razão por que ia dar um tiro nos miolos. Essa razão
era ter sabido que ela o atraiçoava, que ela o atraiçoara sempre. «Mas
perdoo-te, Cândida, e espero que sejas feliz.»
Clara gritou: «Avó!» E não sabia por que
gritara. Depois repetiu mais alto ainda, espantada da sua imobilidade: «Avó!»
Levantou-se a correr, deu a volta à secretária. «Avó! Avó! Avó!»
Mas a avó Cândida tinha partido havia muito.
Maria Judite de Carvalho in Tanta gente, Mariana
CARTA
— Volta.
Minha mãe olhava-me em silêncio, dorida, e todavia serena como se detivesse o fio do meu destino, ou soubesse, da sua carne, que tudo estava certo com a vida: o nascer, o partir, o morrer.
— Volta — repetiu ainda meu pai.
Eis que volto, enfim, nesta tarde de Inverno, e o ciclo se fechou. Abro as portas da casa deserta, abro as janelas e a varanda. No quintal as ervas crescem com as sombras, as oliveiras têm a cor escura do céu. Em baixo, no chão húmido ao pé da loja, há restos de ferragem enferrujada: um sacho sem cabo, um aro de pipa, um regador. Meu pai amava a terra. Lembro-me de o ajudar a podar o pequeno corrimão de videiras, de lhe ir encher o regador para o cebolo novo. Minha mãe olhava-nos da varanda e os três sabíamos uns dos outros no silêncio dos corações. Pensei, sofri, lutei. Mas de tudo o que aconteceu é como se nada me tivesse acontecido. Alguém me incumbiu do que fiz, muito antes de eu nascer, quando outros homens, outra gente, acabavam a tarefa que eu havia de começar. Essa tarefa deixo-a aos que vierem depois. De tudo, ficou-me apenas esta voz humilde que ouço, que ouço.
— Se voltares — tu o dizias.
Aqui estou. Acendo lenha no fogão e as chamas crescem como uma memória antiga. Silêncio bom. Como outrora. Como quando nada tínhamos já a dizer, e estávamos cheios, todavia, da presença um do outro. Estendo as minhas mãos ao calor, e olho, e escuto. O lume enche-as de sangue, acende-as por dentro como brasas. Tu dizias:
— Ninguém conhece as suas mãos. Só talvez as dos outros. É bom ter as tuas aqui, com os dedos todos submissos.
Estranhas noites estas de Inverno, sem um rumor. Só os cães ladram das quintas. Discutem pela noite fora até adormecerem. Ouço um já rouco, lá nos confins da noite, agora a falar sozinho, decerto para ter a última palavra. Houve um cão outrora cá em casa. Numa manhã de chuva, achámo-lo à porta da cozinha, todo ensopado, a tiritar. Minha mãe não gostava de cães.
— Sujam tudo, roem tudo.
Enxuguei-o, dei-lhe pão, pus-lhe um nome. Minha mãe resignou-se. Os caçadores levavam-no à caça porque tinha bom faro. Um dia, não sei como, mataram-no com um tiro. Era um cão perdigueiro. Tinha um olhar humano.
A chama apaga-se, a pirâmide de carvões desmorona-se. Os cães adormecem enfim, sob o grande céu de estrelas. Não há lua. Nem vento. Só as estrelas vibram no céu negro de veludo. Se tu viesses. Eu te imagino, desde o fundo do meu cansaço, silenciosa e grave como esta hora final, como um apelo obscuro vindo do abismo do tempo. Um halo de sombra coroa o teu olhar, a tua presença é quente como o fluido da ternura. Tudo em vão, tudo em vão. Ou não bem isso, não bem isso. Alguma coisa me ficara esperando talvez, desde antes e antes, qualquer coisa que eu trazia do lado de lá da vida. Eis que a encontro e me fala e floresce no sangue e procuro reconhecê-la na tua face. Aqui ao pé do fogão há uma cadeira de braços. Minha mãe sentava-se nela, meu pai nesta em que escrevo. Pelas noites de vento, olhavam o lume, deixavam-se adormecer... Tu dizias:
— É bom terem já dito tudo e reconhecerem-se ainda.
Abro de novo a varanda para a noite, o ar gela-me a face como um espelho. Ao fundo do quintal havia uma figueira grande. Minha mãe franjeava xailes e cintas para fora. E eu atava as cintas e balouçava-me na figueira.
— Ah, tu acabas por deitar a figueira abaixo. E já rompeste duas cintas.
Numa noite brava de Inverno, a figueira caiu. E minha mãe dizia sempre, daí em diante, que fora de eu me balouçar...
Tanta coisa aconteceu e eu recordo e eu recupero não talvez na lembrança, não talvez, mas num apelo indistinto e longínquo e angustiante como o silêncio desta noite. Olho ainda o frémito das estrelas sobre a aridez fria da terra. E penso: «Qualquer coisa vai acontecer de misterioso e grande, qualquer coisa miraculosa se anuncia como a vinda de um Deus.»
— Sim, a esperança é talvez a melhor parte da vida.
Tu o dizias. Eis que porém a minha esperança tem agora a cor do cansaço e da resignação. E de tudo o que pensei e quis que brotasse da terra, de tudo o que foi novo e me comoveu, da agitação do meu sangue, do clamor com que fiquei rouco, da fúria, do choro, da alegria, de tudo o que me deu a conhecer os meus dentes, os meus ossos, as minhas pobres vísceras — a forma que se desenha e que me envolve agora tem o volume quente do seio da piedade. Se amanhã quando me erguesse e pensasse que havia ainda um dia árido a vencer, e outra noite, e outro dia, e quantos dias e quantas noites o tempo guarda para mim, eu de manhã te encontrasse preparando o fogão e o aroma da casa, e te sentasses nesta cadeira ao lado, e os dois nos esquecêssemos de falar, até um dia, até um dia, e nos deixássemos enfim adormecer...
Vergílio Ferreira in Contos
6ª feira
O
VAGABUNDO NA ESPLANADA
Manuel da Fonseca in Contos
Com o devido agradecimento aos autores, O vagabundo na esplanada